Décio Souza
*
De fogos e de cruzes
Quando o beato Conselheiro
abria a boca,
dizem que nela circulavam borboletas,
e era de mel
o hálito de Antônio.
Eu, que antes não cria,
cambaleei dois mil quilômetros
dispondo de uma cruz de fogo como
roupa.
Quando atearam fogo
em minhas mãos
eu nada mais via
que não fosse você,
somente você,
bruxuleando, dançando,
tremendo nas palmas
das minhas mãos;
gargalhando, sorrindo, escorregando
pelas minhas pálpebras azuis,
e por fim
explodindo de vez os olhos meus.
(André Bolívar)
FOI
tarde arde
dói sim
fim urge
surge enfim
lindo lume
de festim
vida se vê
ouve o clarim
mas pouco cresce
dentro de mim
Marcelo Brettas – foto.poesia
Mia Couto
*
nunca escrevi
sou apenas
um tradutor de silêncios
a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo
e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo
que vai matar
em silêncio dialogo
com o silêncio
do plátano
da paineira
e do liquidâmbar.
Plantei-os
também em silêncio
há 20 anos.
Eram frágeis
como uma criança
recém nascida.
Hoje
enormes
eles me protegem
do voo
e das asas
da palavra.
(divido com amigos este poeminha nascido aqui na
casa do mato, em Cotia, bem pertinho dessas três árvores-sentinelas da minha
vida. já faz algum tempo que ele foi escrito, certamente no segundo semestre do
ano passado. A foto mostra a primavera e pedaço de uma das 3 árvores amadas.)
Rubens Jardim
Ravil Galeokbarov
*
Qual o tempo do fim? - sujeito
ato contínuo ligado ao início;
pois se há primeiro passo
incerto não haver o último
e se o último for o primeiro
de novos dias? Pois nada morre,
o corpo que apodrece é alimento
farinha celeste estirada à mesa
para deleite das traças e lembranças
há de restar uma fotografia,
o pai com a filha, a última
sem memórias pois nada conviveu
além do que não lhe contam
uma fotografia e percebo
pensando sobre minha filha
que não tenho registros e fotos
com meu pai, não tenho
o que me prove ser seu filho
além das surras e marcas de cigarro
de um chute no rosto
e ainda me perguntam por que não
grito com Cecília
pois pode ser o início,
ou o fim
mas que restem lembranças
além do que lhe contam
Marcelo Adifa - Rio - 29/01
O CORPO
Digo do corpo
o corpo
e do seu corpo
*
digo do corpo
os sítios e os lugares
*
de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso, em seus vagares
*
Lazeres do corpo;
os ombros
as lisuras - o colo alto
a boca retomada
*
no fim das pernas
a porta da ternura
dentro dos lábios
o fim da madrugada
*
Digo do corpo
o corpo
e do seu corpo
*
as ancas breves
ao gosto dos abraços
*
os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em cansaços
*
Vicio de um corpo
o teu
com o seu veneno
*
que bebo e sugo
até ao mais amargo
ao mais cruel grau
do esgotamento
*
onde em segredo
nado
em cada espasmo
*
Digo do corpo
o corpo:
o nosso corpo
*
Digo do corpo
o gozo
do que faço
*
Digo do corpo
o uso
dos meus dias
*
e a alegria
do corpo sem disfarce
*
Do livro "Educação sentimental", de
1975, da poeta portuguesa Maria Teresa
Horta, uma das autoras das "Novas cartas portuguesas".
*
BASTA
Basta!
.- digo -
que se faça
do corpo da mulher
*
a praça - a casa
a taça
*
A ÁGUA
*
Com que se mata
a sede
do vício e da desgraça
* * *
Maria Teresa Horta. "Mulheres
de Abril", 1977.
Meu coração é o mundo”
todo sábado amanheço
com o coração duro e fundo
dos amores que padeço
meu coração é o mundo”
Romério
Rômulo
Casa de Ouro Preto/
Casa Carlos Scliar, jan/2017
foto: Zeca Brito.
VIDA, VEM NI MIM
Quando olho uma foto de quando era garoto, fico
pensando no que aquele menino faria se soubesse naquele momento tudo o que
aconteceria com ele. Que ele ia levar três tiros e ia ficar em coma no
hospital. Mas que sairia de lá vivo e emocionado por descobrir que tantas
pessoas se importavam com ele. Que iria se apaixonar por algumas mulheres
malucas. Outras doces. Algumas malucas e doces. E que iria se foder por causa
dessas paixões. E que também faria mal a algumas das mulheres que passaram por
sua vida e que caíram na besteira de gostar dele. E que também foderia a vida
delas. E o que restaria seriam poemas e letras de música dilacerantes e
estupidamente sinceras. E que iria viajar de carona e que veria o mar pela
primeira vez aos 18 anos de idade. Que beberia litros e litros das bebidas mais
ordinárias. Que perderia a mãe depois de toda a via sacra de corredores de
hospitais públicos durante anos e que ganharia uma filha menos de um ano
depois. Que viajaria de avião pela primeira vez aos 34 anos para um festival de
teatro de Porto Alegre. Que o teatro, o rock and roll e a literatura é que
fariam dele alguém com uma marca e um lugar no mundo. Que iria acabar em Paris
convidado por um festival de dramaturgia e que sentaria no mesmo banco que
Hemingway sentou enquanto pensava em escrever que a cidade era uma festa. Que
dormiria em bancos de praça, alojamentos de ginásios de esportes e hotéis cinco
estrelas. Que teria muitos amigos. E alguns inimigos também. Embora nunca tenha
feito questão disso (dos inimigos, é claro). Mas os amigos seriam em número
maior. Bem maior. E teria amigos em qualquer cidade por onde andasse, pq pra
ele jamais teria cidade alguma ou país algum, por mais que simpatizasse mais
com uma cidade ou outra. Mas o que seria fundamental seria apenas a vontade de
ficar a vontade. Em qualquer lugar. E em qualquer lugar haveriam sempre bons
amigos para dividir cervejas, doses de whisky e boas histórias. E que algumas
pessoas iriam ler os seus livros e ouvir e até cantar suas músicas. Que muitos
dos seus ídolos se tornariam seus amigos. Que ficaria horas olhando a capa de
um LP do B.B King. Que tentaria rezar à noite e que iria esquecer alguns
trechos das orações e que iria substituir os trechos por versos de Dylan Thomas
e que iria até achar que a oração tinha ficado mais bonita assim. E que sempre
que estivesse triste lembraria dos primeiros versos de um poema do Ferlinguetti
ou os primeiros acordes de uma música do Blue Jeans e isso o faria
distraidamente feliz. Que terminaria sozinho à noite em sua cozinha jogando
play station com a gata da filha arranhando sua perna. Se ele soubesse de tudo
isso, talvez ele não tivesse coragem de seguir adiante. Ou talvez simplesmente
falasse baixinho pro seu professor de português não ouvir: "vida, vem ni
mim".
(Mário
Bortolotto)
Sobre o livro, o autor afirma:
"Dividido em oito partes, Blue Note
aponta as vinculações entre a criação poética e o trabalho ensaístico, a
autobiografia e os estudos culturais, a reflexão teórica e os fatos da vida
cotidiana. Numa linguagem que enfatiza o diálogo, reafirmo o sentido
inalienável da cultura, particularmente nos momentos de crise que afetam o país
e o mundo".
Disponível em: papeisselvagens.com.br
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