terça-feira, 30 de janeiro de 2024

múltiplas poéticas

Fátima Queiroz 


Décio Souza

*

De fogos e de cruzes

 

Quando o beato Conselheiro

abria a boca,

dizem que nela circulavam borboletas,

e era de mel

o hálito de Antônio.

 

Eu, que antes não cria,

cambaleei dois mil quilômetros

dispondo de uma cruz de fogo como roupa.

 

Quando atearam fogo

em minhas mãos

eu nada mais via

que não fosse você,

somente você,

bruxuleando, dançando,

tremendo nas palmas

das minhas mãos;

 

gargalhando, sorrindo, escorregando

pelas minhas pálpebras azuis,

e por fim

explodindo de vez os olhos meus.

 

(André Bolívar)


                           FOI 

tarde arde

dói sim

fim urge

surge enfim

lindo lume

de festim

vida se vê

ouve o clarim

mas pouco cresce

dentro de mim 

              Marcelo Brettas – foto.poesia

                    (ESCRE)VER-ME
*
Mia Couto
*
nunca escrevi

sou apenas
um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo
e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo
que vai matar


 POEMA DE GRATIDÃO ÀS ARVORES-SENTINELAS


em silêncio dialogo
com o silêncio
do plátano
da paineira
e do liquidâmbar.

Plantei-os
também em silêncio
há 20 anos.
Eram frágeis
como uma criança
recém nascida.

Hoje
enormes
eles me protegem
do voo
e das asas
da palavra.

(divido com amigos este poeminha nascido aqui na casa do mato, em Cotia, bem pertinho dessas três árvores-sentinelas da minha vida. já faz algum tempo que ele foi escrito, certamente no segundo semestre do ano passado. A foto mostra a primavera e pedaço de uma das 3 árvores amadas.)

 

Rubens Jardim  


                                       Ravil Galeokbarov 


                                                        *



Qual o tempo do fim? - sujeito

ato contínuo ligado ao início;

pois se há primeiro passo

incerto não haver o último

 

e se o último for o primeiro

de novos dias? Pois nada morre,

o corpo que apodrece é alimento

farinha celeste estirada à mesa

para deleite das traças e lembranças

 

há de restar uma fotografia,

o pai com a filha, a última

sem memórias pois nada conviveu

além do que não lhe contam

 

uma fotografia e percebo

pensando sobre minha filha

que não tenho registros e fotos

com meu pai, não tenho

o que me prove ser seu filho

além das surras e marcas de cigarro

de um chute no rosto

e ainda me perguntam por que não grito com Cecília

 

pois pode ser o início,

                         ou o fim

 

mas que restem lembranças

além do que lhe contam

 

Marcelo Adifa - Rio - 29/01



O CORPO

Digo do corpo
o corpo
e do seu corpo
*
digo do corpo
os sítios e os lugares
*
de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso, em seus vagares
*
Lazeres do corpo;
os ombros
as lisuras - o colo alto
a boca retomada
*
no fim das pernas
a porta da ternura
dentro dos lábios
o fim da madrugada
*
Digo do corpo
o corpo
e do seu corpo
*
as ancas breves
ao gosto dos abraços
*
os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em cansaços
*
Vicio de um corpo
o teu
com o seu veneno
*
que bebo e sugo
até ao mais amargo
ao mais cruel grau
do esgotamento
*
onde em segredo
nado
em cada espasmo
*
Digo do corpo
o corpo:
o nosso corpo
*
Digo do corpo
o gozo
do que faço
*
Digo do corpo
o uso
dos meus dias
*
e a alegria
do corpo sem disfarce

*

Do livro "Educação sentimental", de 1975, da poeta portuguesa Maria Teresa Horta, uma das autoras das "Novas cartas portuguesas".


*

BASTA

Basta!
.- digo -

que se faça
do corpo da mulher

*
a praça - a casa
a taça

*
A ÁGUA
*
Com que se mata
a sede
do vício e da desgraça

* * *

Maria Teresa Horta. "Mulheres de Abril", 1977.


Meu coração é o mundo”

 

todo sábado amanheço

com o coração duro e fundo

dos amores que padeço

 

meu coração é o mundo”

 

Romério Rômulo 

 Casa de Ouro Preto/

Casa Carlos Scliar, jan/2017
foto: Zeca Brito.


VIDA, VEM NI MIM

Quando olho uma foto de quando era garoto, fico pensando no que aquele menino faria se soubesse naquele momento tudo o que aconteceria com ele. Que ele ia levar três tiros e ia ficar em coma no hospital. Mas que sairia de lá vivo e emocionado por descobrir que tantas pessoas se importavam com ele. Que iria se apaixonar por algumas mulheres malucas. Outras doces. Algumas malucas e doces. E que iria se foder por causa dessas paixões. E que também faria mal a algumas das mulheres que passaram por sua vida e que caíram na besteira de gostar dele. E que também foderia a vida delas. E o que restaria seriam poemas e letras de música dilacerantes e estupidamente sinceras. E que iria viajar de carona e que veria o mar pela primeira vez aos 18 anos de idade. Que beberia litros e litros das bebidas mais ordinárias. Que perderia a mãe depois de toda a via sacra de corredores de hospitais públicos durante anos e que ganharia uma filha menos de um ano depois. Que viajaria de avião pela primeira vez aos 34 anos para um festival de teatro de Porto Alegre. Que o teatro, o rock and roll e a literatura é que fariam dele alguém com uma marca e um lugar no mundo. Que iria acabar em Paris convidado por um festival de dramaturgia e que sentaria no mesmo banco que Hemingway sentou enquanto pensava em escrever que a cidade era uma festa. Que dormiria em bancos de praça, alojamentos de ginásios de esportes e hotéis cinco estrelas. Que teria muitos amigos. E alguns inimigos também. Embora nunca tenha feito questão disso (dos inimigos, é claro). Mas os amigos seriam em número maior. Bem maior. E teria amigos em qualquer cidade por onde andasse, pq pra ele jamais teria cidade alguma ou país algum, por mais que simpatizasse mais com uma cidade ou outra. Mas o que seria fundamental seria apenas a vontade de ficar a vontade. Em qualquer lugar. E em qualquer lugar haveriam sempre bons amigos para dividir cervejas, doses de whisky e boas histórias. E que algumas pessoas iriam ler os seus livros e ouvir e até cantar suas músicas. Que muitos dos seus ídolos se tornariam seus amigos. Que ficaria horas olhando a capa de um LP do B.B King. Que tentaria rezar à noite e que iria esquecer alguns trechos das orações e que iria substituir os trechos por versos de Dylan Thomas e que iria até achar que a oração tinha ficado mais bonita assim. E que sempre que estivesse triste lembraria dos primeiros versos de um poema do Ferlinguetti ou os primeiros acordes de uma música do Blue Jeans e isso o faria distraidamente feliz. Que terminaria sozinho à noite em sua cozinha jogando play station com a gata da filha arranhando sua perna. Se ele soubesse de tudo isso, talvez ele não tivesse coragem de seguir adiante. Ou talvez simplesmente falasse baixinho pro seu professor de português não ouvir: "vida, vem ni mim".

(Mário Bortolotto)


Sobre o livro, o autor afirma: "Dividido em oito partes, Blue Note aponta as vinculações entre a criação poética e o trabalho ensaístico, a autobiografia e os estudos culturais, a reflexão teórica e os fatos da vida cotidiana. Numa linguagem que enfatiza o diálogo, reafirmo o sentido inalienável da cultura, particularmente nos momentos de crise que afetam o país e o mundo".


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