Uma Outra
Inquisição?
Arthur
Soffiatti – Logo de cara, quero declarar que Artur Gomes pode
ser considerado o melhor poeta campista da atualidade, sobretudo porque,
campista ele ultrapassa os limites do município e é reconhecido nos meios literários
nacionais.
Mário
Sérgio – (arquiteto pós-moderno) –Sei não, Artur parece meio enganado,
enganoso e enganador. Por trás de sua escrita aparentemente revolucionária,
esconde-se um poeta convencional que, nem mesmo se afirmou, já revela sinais de
uma criatividade esgotada.
Sérgio
Provisano – É, estou de acordo. Chega de federika bezerra, lady gumes,
e de mocidade independente de padre olivácio.
Mário
Sérgio – Não apenas esta fixação, que parece neurótico-obsessiva, mas o
uso concreto da página com uma poesia discursiva, mais para o ouvido do que
para a vista. Cito alguns exemplos: a palavra grafada em cores, os dois pontos
isolados, o emprego de letras maiúsculas, todos eles como recursos que passam
despercebidos na oralidade do poema declamado.
Arthur
Soffiatti – Já que minha declaração inicial gerou uma discussão sem que
fosse esse o meu intuito, requeiro de volta a palavra. Há no novo livro de
Artur, um poema de cintilante lucidez.
Trata-se de antiLírica:
“eu não
soun zen
muito menos
zhô
nem tão
puco zapa
nem ando
na contra¢apa
do teu
disquinho digital
não
alinho pela esquerda
nem a direita
do fonema
vôo no
centro viagem
olho
rasante miragem
vei
pulsante poema”
Sem levar em conta seu caráter discursivo, que deve ser
discutido, mas não é discutível, estamos diante de um poema-manifesto. Ele
explica o alinhamento dos poemas de BraziLírica
Pereira : A Traição Das Metáforas pela direita e não pela esquerda. Agora
faço questão de ir às últimas conseqüências do que vocês estão falando: nem
mesmo o mais discursistas dos poetas pôde, até o momento, prescindir do suporte
da página, inclusive da página da tela do computador. E então eu pergunto: por
quê alinhar o poema pela esquerda e não pela direita?
Sérgio
Provisano – É preciso começar a frase de algum ponto, e nas linguagens
gregas e latinas, escreve-se da esquerda para a direita, ao contrário do árabe
e do hebraico, escritos da direita para a esquerda, ou do chinês, escrito de
cima para baixo.
Arthur
Soffiatti – Certo, mas até mesmo o mais empedernido dos poetas
clássicos não permanece rigidamente colado à margem esquerda. Há afastamentos
progressivos da margem, há escapulidas para o centro, há espaços entre as estrofes,
tudo também recurso de escrita que desaparece na fala. Só há uma forma de
livrar-se do espaço visual : é recorrer aos registro da palavra em disco ou em
fitas magnéticas. Todavia, não é comum um poeta lançar obra sua em disco de
vinil ou “laser”, em fita cassete ou em vídeo. Primeiro vem o livro. Em síntese,
não nos libertamos do livro e considero ótima essa prisão.
Mário
Sérgio – Dei uma olhada em BraziLírica
Pereira : A Traição Das Metáforas – Parece uma homenagem ao escritor
paulista Uilcon Pereira. Curioso é que, num sebo da velha rodoviária de Campos,
encontrei um livro de Uilcon Pereira à venda, com uma dedicatória a Artur. O
cara gosta tanto do Uilcon que vendeu um livro dele com dedicatória! Que
homenagem é esta?
Sérgio
Provisano – Você é bem campista mesmo, Primeiro, deu uma olhada no
livro, não o leu. Segundo, tem a
impressão de que presta uma homenagem . Terceiro, vem com um argumento externo
ao livro para julgar sua qualidade. Artur também se apropriou de livros de
Oswald de Andrade na biblioteca do Soffiatti. Vá lá que tal gesto seja
considerado uma falha de caráter, mas ele não depõe contra a obra. Se
caminharmos por essa trilha, a obra de Wagner deve ser jogada no lixo.
Mário
Sérgio – Estou aqui a recordar Prata Tavares, para quem Artur Gomes
não tinha cultura poética. Ele ia mais longe, inclusive sustentando que Artur,
mesmo com seus poeminhas, não poderia ser mais considerado um poeta, pois que
abandonava a palavra. Acho que o Prata tinha razão quanto aos dois pontos.
Arthur
Soffiatti – De fato, Prata Tavares externou esta opinião a mais de uma
pessoa com sua inconfundível voz fanhosa. Era o julgamento dele com relação a
um poeta jovem que talvez não tivesse lido o suficiente de poesia. Tal
julgamento, porém, não invalida o
talento. Mas, atualmente, convenhamos, Artur demonstra cultura poética. Em BraziLírica Pereira, além de inspiração,
há cultura poética. Encontramos nele achados, como: “drummundo pra todo canto”,
“esse Não ç dilha” “cerVeja agora” ou esta genial:
“salvador
não é dali
a mulher que quero mesmo
é um dedé
que não dadá
bia de
dante do inferno
itamarati Itamaracá”
Cumpre observar, também que o livro está repleto de referências
a Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Mallarmè, Chico Buarque de
Hollanda, Murilo Mendes, Clarice Lispector, Oswald de Andrade, Ana Cristina
César, Ferreira Gullar, João Guimarães Rosa, Torquato Neto, Ezra Pound, Simone
de Beavoir, Sartre, Sousândrade e até Marcabru. Vocês sabem quem foi Marcabru,
poeta provençal hermético e soturno? Creio que o Prata teria outro juízo de
Artur se vivesse.
Mário
Sérgio – E quanto ao fato de Artur não ser poeta por abandono da
palavra?
Arthur
Soffiatti – Certa vez, Prata escreveu um artigo colocando a palavra
como inerente à poesia. Neste sentido, ele ainda admitia o concretismo. Não,
porém, o poema processo, que substitui a palavra por signos visuais. Ele se
apegava a Pound , considerado um dos maiores poetas do século XX, para ilustrar
sua tese de que a poesia não pode abandonar o reino da palavra. Escrevi um
artigo longo de bem chato, por sinal, mostrando que esta concepção de poesia
acabou quando registraram em signos, sobre uma superfície qualquer, a palavra
oral. Nesse momento, a poesia deu seu primeiro passo para transferir-se da boca-ouvido-cérebro
para o olho-cérebro, abolindo o intermediário. Mesmo assim continuavam
possíveis as leituras auditiva e visual do poema. Mas vejam bem: talvez haja
mais relação das escritas pictográfica e ideográfica com a oralidade do que das
escritas fonética e alfabética com a mesma oralidade. O contato com o
pictograma ou com o ideograma nos remete diretamente à ideia da coisa
representada e ao seu enunciado. Um desenho estilizado de uma árvore fala mais
rapidamente de árvore do que a palavra árvore,
que não tem qualquer semelhança
com a coisa representada. Ela apenas nos remete à palavra oral que se refere o
objeto. Neste sentido, o poema grafados nos sistemas de escrita ocidental estão
mais longe da oralidade que a pictografia do paleolítico superior. O desenho de
uma flor fala mais imediatamente de uma flor do que a palavra Flor fala da flor através da imagem. Esta
é a primeira forma de escrita que as crianças aprendem. Não é atoa que, mesmo
antes de aprender a falar, elas já reconhecem signos. Quando aprendem, as palavras
correspondentes vem à boca ao vê-los. Já com os signos usados para indicar o
nome do objeto ou de uma ideia, o aprendizado é mais lento. Em síntese, o poema
pode usar sinais linguísticos em sua fatura. O próprio Pound, admirado pelo
Prata, valia-se de símbolos das escritas ideográficas em seus poemas.
Mário
Sérgio – Argumente como quiser, cara, mas minha opinião continua a
mesma.
Sérgio
Provisano – É, eu também não estou devidamente convencido.
Mário
Sérgio – Nem eu.
Arthur
Soffiatti – Tudo bem. Que a discussão fique em aberto, mostrando que
Artur Gomes é uma figura polêmica de nossa intelectualidade.
Uilcon
Pereira – Fiquei daqui um bom tempo, ouvindo vocês nessa fogueira
inquisitória. E olha que quem inventou a outra inquisição fui eu. A bem
verdade, vocês falam do escultor sem prestar muita atenção às suas ferramentas.
Ora essa! Vocês estão como aqueles que pensavam que a obra do Artur Gomes já
estava consolidada e definida, em termos de cristalização dos pressupostos,
modelos e técnicas. Nos jogos entre oralidade e escrita poética, os novos
textos viriam somente aprofundar e desdobrar esses fundamentos, sem renovações
estruturais de maior alcance. Puro engano, todavia. No verão de 1996, o
exMaluco de Campos abre-nos de repente uma surpreendente face “outra”,
absolutamente inesperada e imprevisível. Para nosso espanto meio embasbacado, eis
que surge uma boa vintena de experiências – a meio caminho entre poesia e artes
visuais - , verbo e recursos plásticos – aproximando material escrito e cores,
recortes de papel celofone, fotos, desenhos, tramas, relevos, retalhos de
tecidos, superposições, transparências.
Mário
Sérgio – Mas isto não é o que ele chama de fase dos “Retalhos Imortais do SerAfim”, em que mais se aprofunda na
tentativa do abandono da palavra?
Uilcon
Pereira – Podemos considerar mais de perto a fase “outra”,
complementária da anterior, jamais contraposta ou substitutiva da estratégia
que o caracterizou até hoje: nos “poemas.gráfico.visuais”,
como ele intitula em CarNAvalha Gumes
este “work-in-progress” – são utilizados lápis de cera, crayon, caneta
esferográfica, afiados por suas armas brancas, tesoura, estilete, gilete: o
suporte é de papel shoeler ou fabriano, mais raramente cartão tela: nos ofícios
bricolagem, mesclam-se letras, frases inteiras ou estilhaçadas, nomes próprios,
pedaços de versos, blocos de caracteres impressos ou anotações manuais, sinais
de pontuação, resíduos de jornal, pinturas, olhos, panos (atenção, igualmente:
nesta arte pobre, de volta a um artesanato bem primitivo, há muita
sensibilidade das tesouras, colas, gestos, sinestesias, conexões, transições e
cortes abruptos). Sim, os “poemas.gráfico.visuais”
de Artur Gomes incorporam acaso, integram o azar, a improvisação e elementos do
inconsciente. Organizam-se, porém, a partir de (no interior de) uma só matriz
bem definida e simples: campos lúdicos de formatos retangulares, com orientação
vertical ou, mais eventualmente, horizontal. E podem, exigem paredes, murais,
painéis; a vocação deles vai em direção às galerias, saguão de faculdades ou
biblioteca, centro cultural, mostras de poesia visual, grandes exposições de
arte. Lugares de vida coletiva enfim, espaço onde públicos vastíssimos podem
circular, trocar opiniões, dialogar sem aqueles rigores e solenidades da
leitura solitária. Na deriva, saltam das páginas de livros e fazem suas
festanças sensoriais, multicoloridas erotisadas, em posições de frontalidade.
Assim, desafiam e instigam os leitores/contempladores, que também os
recebem de pé, eretos, olhos nos blocos de efeitos verbo/visuais, aproximando-se
ou tomando distância, entre a diversão sem compromisso e/ou atitudes cognoscitivas, estéticas, interpretativas. “todo POEMA tem dois gomes” diz uma das poucas sentenças de sentido claro, legível,
contrastando com acumulações de grafites, rabiscos, empastelamentos,
caligrafias que já não obedecem aos traçados habituais – enigmas da escritura
que se faz imagem e libera suas virtualidades plástico-visuais. Dois Gomes, dois gumes, na interface
literatura artes visuais, poesia intersemiótica já se despedindo das formas,
tradições, códigos, e suportes mais convencionais, seculares; linguagem nova,
escrita especializada, em estado nascente, vinculada aos ícones, manchas, zonas de cor, planos e eixos da figuralidade;
linguagem que invoca necessariamente um gênero de leitura específico, uma
atividade do “Vler”, para retomar
aqui um conceito por mim formulado em 1973, em tese de doutoramento sobre os
enlaces da figuração escrita, percepções
imagéticas e leituras simultâneas, conectadamente, indissoluvelmente. “poema continua a ser poema” – eis o
segredo dessa investigação de Artur Gomes para quem um poema é um poema é um poema, ainda que aflore em convergência, contraposição
ou ar de família, com bandeirinhas do Brasil ou de Volpi, translucidez e
opacidade, tecido, arabescos, garranchos, cascatas de papel, amarelo, azul, vermelho,
brancuras e negrumes na ordenação global. Poema
continua a ser poema, ou volta a ser poesia de alta qualidade, agora
entreTecido com outras figuras de fantasia, inserido também nos vastos
circuitos ideológicos da sociedade pós-moderna, império dos signos
fragmentários e carregados de apelo visual – cartazes, revistas, páginas de
jornal nas bancas, capas de discos, logotipos, placas, faixas, luminosos,
outdoors, clips, quadrinhos, vídeos, slaides, folhetos, livros ilustrados,
joguinhos eletrônicos.
Fernando
Aguiar – Li CarNAvalha Gumes,
e confesso que há muito não lia um
livro tão instigante, e olha que sou crítico contumaz de poesia escrita.
Leontino
Filho – Desde Suor & Cio
e Couro Cru & Carne Viva, pude
constatar o que é uma poesia nua e crua, e ao mesmo tempo de um lirismo
incomum.
Enzo Minarelli – Parece-nos que Artur Gomes calçou coturnos
mágicos e como um tigre de botas , com um olhoantena,
capta as imagens no inconsciente do ser, como se ao mesmo tempo habitasse nele
um coletivo urbano expulso de sua selva natural. Antropofágico, come e vomita transformando em
arte a indgestão.
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