terça-feira, 1 de março de 2022

uma outra inquisição?

 

            

            Uma Outra Inquisição?

 

Arthur Soffiatti – Logo de cara, quero declarar que Artur Gomes pode ser considerado o melhor poeta campista da atualidade, sobretudo porque, campista ele ultrapassa os limites do município e é reconhecido nos meios literários nacionais.

Mário Sérgio – (arquiteto pós-moderno) –Sei não, Artur parece meio enganado, enganoso e enganador. Por trás de sua escrita aparentemente revolucionária, esconde-se um poeta convencional que, nem mesmo se afirmou, já revela sinais de uma criatividade esgotada.

Sérgio Provisano – É, estou de acordo. Chega de federika bezerra, lady gumes, e de mocidade independente de padre olivácio.

Mário Sérgio – Não apenas esta fixação, que parece neurótico-obsessiva, mas o uso concreto da página com uma poesia discursiva, mais para o ouvido do que para a vista. Cito alguns exemplos: a palavra grafada em cores, os dois pontos isolados, o emprego de letras maiúsculas, todos eles como recursos que passam despercebidos na oralidade do poema declamado.

Arthur Soffiatti – Já que minha declaração inicial gerou uma discussão sem que fosse esse o meu intuito, requeiro de volta a palavra. Há no novo livro de Artur, um poema de  cintilante lucidez. Trata-se de antiLírica:

 

“eu não soun zen

muito menos zhô

nem tão puco zapa

nem ando na contra¢apa

do teu disquinho digital

não alinho pela esquerda

nem a direita do fonema

vôo no centro viagem

olho rasante miragem

vei pulsante poema”

 

Sem levar em conta seu caráter discursivo, que deve ser discutido, mas não é discutível, estamos diante de um poema-manifesto. Ele explica o alinhamento dos poemas de BraziLírica Pereira : A Traição Das Metáforas pela direita e não pela esquerda. Agora faço questão de ir às últimas conseqüências do que vocês estão falando: nem mesmo o mais discursistas dos poetas pôde, até o momento, prescindir do suporte da página, inclusive da página da tela do computador. E então eu pergunto: por quê alinhar o poema pela esquerda e não pela direita?

Sérgio Provisano – É preciso começar a frase de algum ponto, e nas linguagens gregas e latinas, escreve-se da esquerda para a direita, ao contrário do árabe e do hebraico, escritos da direita para a esquerda, ou do chinês, escrito de cima para baixo.

Arthur Soffiatti – Certo, mas até mesmo o mais empedernido dos poetas clássicos não permanece rigidamente colado à margem esquerda. Há afastamentos progressivos da margem, há escapulidas para o centro, há espaços entre as estrofes, tudo também recurso de escrita que desaparece na fala. Só há uma forma de livrar-se do espaço visual : é recorrer aos registro da palavra em disco ou em fitas magnéticas. Todavia, não é comum um poeta lançar obra sua em disco de vinil ou “laser”, em fita cassete ou em vídeo. Primeiro vem o livro. Em síntese, não nos libertamos do livro e considero ótima essa prisão.

Mário Sérgio – Dei uma olhada em BraziLírica Pereira : A Traição Das Metáforas – Parece uma homenagem ao escritor paulista Uilcon Pereira. Curioso é que, num sebo da velha rodoviária de Campos, encontrei um livro de Uilcon Pereira à venda, com uma dedicatória a Artur. O cara gosta tanto do Uilcon que vendeu um livro dele com dedicatória! Que homenagem é esta?

Sérgio Provisano – Você é bem campista mesmo, Primeiro, deu uma olhada no livro, não o leu. Segundo,  tem a impressão de que presta uma homenagem . Terceiro, vem com um argumento externo ao livro para julgar sua qualidade. Artur também se apropriou de livros de Oswald de Andrade na biblioteca do Soffiatti. Vá lá que tal gesto seja considerado uma falha de caráter, mas ele não depõe contra a obra. Se caminharmos por essa trilha, a obra de Wagner deve ser jogada no lixo.

Mário Sérgio – Estou aqui a recordar Prata Tavares, para quem Artur Gomes não tinha cultura poética. Ele ia mais longe, inclusive sustentando que Artur, mesmo com seus poeminhas, não poderia ser mais considerado um poeta, pois que abandonava a palavra. Acho que o Prata tinha razão quanto aos dois pontos.

Arthur Soffiatti – De fato, Prata Tavares externou esta opinião a mais de uma pessoa com sua inconfundível voz fanhosa. Era o julgamento dele com relação a um poeta jovem que talvez não tivesse lido o suficiente de poesia. Tal julgamento, porém, não invalida  o talento. Mas, atualmente, convenhamos, Artur demonstra cultura poética. Em BraziLírica Pereira, além de inspiração, há cultura poética. Encontramos nele achados, como: “drummundo pra todo canto”, “esse Não ç dilha” “cerVeja agora” ou esta genial:

 

“salvador não é dali

a mulher  que quero mesmo

é um dedé que não dadá

bia de dante do inferno

itamarati Itamaracá”

 

Cumpre observar, também que o livro está repleto de referências a Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Mallarmè, Chico Buarque de Hollanda, Murilo Mendes, Clarice Lispector, Oswald de Andrade, Ana Cristina César, Ferreira Gullar, João Guimarães Rosa, Torquato Neto, Ezra Pound, Simone de Beavoir, Sartre, Sousândrade e até Marcabru. Vocês sabem quem foi Marcabru, poeta provençal hermético e soturno? Creio que o Prata teria outro juízo de Artur se vivesse.

Mário Sérgio – E quanto ao fato de Artur não ser poeta por abandono da palavra?

Arthur Soffiatti – Certa vez, Prata escreveu um artigo colocando a palavra como inerente à poesia. Neste sentido, ele ainda admitia o concretismo. Não, porém, o poema processo, que substitui a palavra por signos visuais. Ele se apegava a Pound , considerado um dos maiores poetas do século XX, para ilustrar sua tese de que a poesia não pode abandonar o reino da palavra. Escrevi um artigo longo de bem chato, por sinal, mostrando que esta concepção de poesia acabou quando registraram em signos, sobre uma superfície qualquer, a palavra oral. Nesse momento, a poesia deu seu primeiro passo para transferir-se da boca-ouvido-cérebro para o olho-cérebro, abolindo o intermediário. Mesmo assim continuavam possíveis as leituras auditiva e visual do poema. Mas vejam bem: talvez haja mais relação das escritas pictográfica e ideográfica com a oralidade do que das escritas fonética e alfabética com a mesma oralidade. O contato com o pictograma ou com o ideograma nos remete diretamente à ideia da coisa representada e ao seu enunciado. Um desenho estilizado de uma árvore fala mais rapidamente de árvore do que a palavra árvore, que não tem qualquer semelhança com a coisa representada. Ela apenas nos remete à palavra oral que se refere o objeto. Neste sentido, o poema grafados nos sistemas de escrita ocidental estão mais longe da oralidade que a pictografia do paleolítico superior. O desenho de uma flor fala mais imediatamente de uma flor do que a palavra Flor fala da flor através da imagem. Esta é a primeira forma de escrita que as crianças aprendem. Não é atoa que, mesmo antes de aprender a falar, elas já reconhecem signos. Quando aprendem, as palavras correspondentes vem à boca ao vê-los. Já com os signos usados para indicar o nome do objeto ou de uma ideia, o aprendizado é mais lento. Em síntese, o poema pode usar sinais linguísticos em sua fatura. O próprio Pound, admirado pelo Prata, valia-se de símbolos das escritas ideográficas em seus poemas.

Mário Sérgio – Argumente como quiser, cara, mas minha opinião continua a mesma.

Sérgio Provisano – É, eu também não estou devidamente convencido.

Mário Sérgio – Nem eu.

Arthur Soffiatti – Tudo bem. Que a discussão fique em aberto, mostrando que Artur Gomes é uma figura polêmica de nossa intelectualidade.

Uilcon Pereira – Fiquei daqui um bom tempo, ouvindo vocês nessa fogueira inquisitória. E olha que quem inventou a outra inquisição fui eu. A bem verdade, vocês falam do escultor sem prestar muita atenção às suas ferramentas. Ora essa! Vocês estão como aqueles que pensavam que a obra do Artur Gomes já estava consolidada e definida, em termos de cristalização dos pressupostos, modelos e técnicas. Nos jogos entre oralidade e escrita poética, os novos textos viriam somente aprofundar e desdobrar esses fundamentos, sem renovações estruturais de maior alcance. Puro engano, todavia. No verão de 1996, o exMaluco de Campos abre-nos de repente uma surpreendente face “outra”, absolutamente inesperada e imprevisível. Para nosso espanto meio embasbacado, eis que surge uma boa vintena de experiências – a meio caminho entre poesia e artes visuais - , verbo e recursos plásticos – aproximando material escrito e cores, recortes de papel celofone, fotos, desenhos, tramas, relevos, retalhos de tecidos, superposições, transparências.

Mário Sérgio – Mas isto não é o que ele chama de fase dos “Retalhos Imortais do SerAfim”, em que mais se aprofunda na tentativa do abandono da palavra?

Uilcon Pereira – Podemos considerar mais de perto a fase “outra”, complementária da anterior, jamais contraposta ou substitutiva da estratégia que o caracterizou até hoje: nos “poemas.gráfico.visuais”, como ele intitula em CarNAvalha Gumes este “work-in-progress” – são utilizados lápis de cera, crayon, caneta esferográfica, afiados por suas armas brancas, tesoura, estilete, gilete: o suporte é de papel shoeler ou fabriano, mais raramente cartão tela: nos ofícios bricolagem, mesclam-se letras, frases inteiras ou estilhaçadas, nomes próprios, pedaços de versos, blocos de caracteres impressos ou anotações manuais, sinais de pontuação, resíduos de jornal, pinturas, olhos, panos (atenção, igualmente: nesta arte pobre, de volta a um artesanato bem primitivo, há muita sensibilidade das tesouras, colas, gestos, sinestesias, conexões, transições e cortes abruptos). Sim, os “poemas.gráfico.visuais” de Artur Gomes incorporam acaso, integram o azar, a improvisação e elementos do inconsciente. Organizam-se, porém, a partir de (no interior de) uma só matriz bem definida e simples: campos lúdicos de formatos retangulares, com orientação vertical ou, mais eventualmente, horizontal. E podem, exigem paredes, murais, painéis; a vocação deles vai em direção às galerias, saguão de faculdades ou biblioteca, centro cultural, mostras de poesia visual, grandes exposições de arte. Lugares de vida coletiva enfim, espaço onde públicos vastíssimos podem circular, trocar opiniões, dialogar sem aqueles rigores e solenidades da leitura solitária. Na deriva, saltam das páginas de livros e fazem suas festanças sensoriais, multicoloridas erotisadas, em posições de frontalidade. Assim, desafiam e instigam os leitores/contempladores,  que também os recebem de pé, eretos, olhos nos blocos de efeitos verbo/visuais, aproximando-se ou tomando distância, entre a diversão sem compromisso e/ou atitudes cognoscitivas, estéticas, interpretativas. “todo POEMA tem dois gomes” diz uma das poucas sentenças de sentido claro, legível, contrastando com acumulações de grafites, rabiscos, empastelamentos, caligrafias que já não obedecem aos traçados habituais – enigmas da escritura que se faz imagem e libera suas virtualidades plástico-visuais. Dois Gomes, dois gumes, na interface literatura artes visuais, poesia intersemiótica já se despedindo das formas, tradições, códigos, e suportes mais convencionais, seculares; linguagem nova, escrita especializada, em estado nascente, vinculada aos ícones, manchas,  zonas de cor, planos e eixos da figuralidade; linguagem que invoca necessariamente um gênero de leitura específico, uma atividade do “Vler”, para retomar aqui um conceito por mim formulado em 1973, em tese de doutoramento sobre os enlaces da figuração escrita, percepções imagéticas e leituras simultâneas, conectadamente, indissoluvelmente. “poema continua a ser poema” – eis o segredo dessa investigação de Artur Gomes para quem um poema é um poema é um poema, ainda que aflore em convergência, contraposição ou ar de família, com bandeirinhas do Brasil ou de Volpi, translucidez e opacidade, tecido, arabescos, garranchos, cascatas de papel, amarelo, azul, vermelho, brancuras e negrumes na ordenação global. Poema continua a ser poema, ou volta a ser poesia de alta qualidade, agora entreTecido com outras figuras de fantasia, inserido também nos vastos circuitos ideológicos da sociedade pós-moderna, império dos signos fragmentários e carregados de apelo visual – cartazes, revistas, páginas de jornal nas bancas, capas de discos, logotipos, placas, faixas, luminosos, outdoors, clips, quadrinhos, vídeos, slaides, folhetos, livros ilustrados, joguinhos eletrônicos.

 Paulo Bruscky – Bem, se vocês já leram BraziLírica Pereira : A Traição Das Metáforas, então como não perceberam¿ Me parece haver sempre em Artur Gomes, um jogo de segundas intenções, onde o que é nem sempre é palavra ou imagem e vice-versa, porque pode representar tudo e ao mesmo tempo nada. E isto é incorporação de referências múltiplas adquiridas nestes vinte e tantos anos em que afia suas armas brancas: navalha, gilete, estilete: metáforas para cortar os olhos com imagens e ferir ouvidos com palavras, para ferir os olhos com palavras e cortar ouvidos com imagens, metáforas.

Fernando Aguiar – Li CarNAvalha Gumes, e  confesso que há muito não lia um livro tão instigante, e olha que sou crítico contumaz de poesia escrita.

Leontino Filho – Desde Suor & Cio e Couro Cru & Carne Viva, pude constatar o que é uma poesia nua e crua, e ao mesmo tempo de um lirismo incomum.

Enzo Minarelli – Parece-nos que Artur Gomes calçou coturnos mágicos e como um tigre de botas , com um olhoantena, capta as imagens no inconsciente do ser, como se ao mesmo tempo habitasse nele um coletivo urbano expulso de sua selva natural.  Antropofágico, come e vomita transformando em arte a indgestão.



Artur Gomes

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