discípulo
de Rimbaud
minha tv pifou
nem tenho ido ao cinema
meu filme está na carne
da palavra
esse poema é trágico
me lembra infância lá na cacomanga
televisão nunca tivemos
era rádio de pilha depois de bateria
meu pai criava porcos
para vender na primavera
e complementar o seu salário
que nem o mínimo era
carteira de trabalho nunca teve
como administrador de uma fazenda
com mais de 1000 alqueires de terra
com produção agropecuária
canavieira e cerâmica industrial
esse é um poema em linha reta
nem sei por quê e para que
me tornei poeta discípulo de Rimbaud
talvez só para escrever
que no Brasil mesmo depois da Abolição
Escravidão nunca terminou
Artur Gomes
O Homem Com A Flor Na Boca
https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/
DA CARNE DA
PALAVRA
Tanussi Cardoso, poeta
Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o
poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais
novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que
afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas,
entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.
Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o
autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que
desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção
popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do
Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos
quadrinhos.
Todo esse caldeirão cultural, todas essas
referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato,
Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e
bem lá atrás,Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald
e Guimarães Rosa - e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud,
Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse
manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra
envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o
refinamento de sua fala.
Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de
poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar
os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas
tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de
nostalgia e futuro.
“visto uma vaca triste como a tua cara:
estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”
De forma particular, o autor parece nos indicar
algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha
tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e
tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor
e à brutalidade.
Cada poema possui sua própria respiração, pausa e
pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito
dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de
encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente
imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de
descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.
“a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”
Ainda que não pretenda novas experiências formais,
o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários
enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando
falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de
objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito
da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um
discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do
livro, algumas impurezas saudáveis.
“te procurei na Ipiranga
não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”
SagaraNAgensFulinaímicas nos apresenta uma peça de
tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o
desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e,
tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a
imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento
dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de
Caetano.
“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”
E indaga e responde:
“até quando esperaria?
até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”
Em seu texto, há uma espécie de dança frenética,
onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa
feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no
coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas
inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar
amoroso, pelo encontro dos corpos.
“e para espanto dos decentes
te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”
Dono de uma sonoridade vocabular repleta de
aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical,
refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com
as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu
vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias,
das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de
poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza,
transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma
poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical -
atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.
“quero dizer que ainda é cedo
ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”
De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte,
as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens
e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade - onde Macunaíma reparte
seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em
fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.
“é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”
Ao seguir de perto o conceito metafórico do
processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores,
com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa
poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da
homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos
com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma
entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres,
imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que
abre o livro:
“guima meu mestre guima
em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”
E afirma:
“só curto a palavra viva
odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”
No livro, os poemas se interpenetram,
linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas,
num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se
esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus
textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos,
Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante.
Sentimentos contraditórios, como se o autor
quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos,ambiguamente,
rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”
“eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta”
Na verdade, sua poesia apresenta vários (re)
cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo.
Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa
dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur
Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós.Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou
não?
“a carne que me cobre é fraca
a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”
Tantas vezes escatológico e sensual, numa
performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário
poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas,
cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e
lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior,
nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.
Sem falsos pudores, o autor procura, em seu
liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com
cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na
corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades
com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho
ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após
o término de sua leitura.
“a carne da palavra
: POESIA
l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”
A poesia de cunho social é, igualmente, referência
obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária,
marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente,
no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980.
Esses poemas político-sociais, junto ao tema
amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor
& Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto
de JardiNÓpolis& Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em
todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.
Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São
Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde
tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser
reconstruída em poesia.
“ando por são Paulo meio Araraquara
a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”
Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar
beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana,
tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu
interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. E que só há um meio de
o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem.
Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial
de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da
nossa língua são amor e liberdade.
“a coisa que me habita é pólvora
dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”
SagaraNAgensFulinaímicas veio confirmar o que os
leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador
que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da
realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em
permanente ebulição – um texto em contínuo movimento.
Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa,
delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária,
corrosiva, visceral, abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do
livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro,
uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de
palavras.
Teatro do Absurdo
do kaos a lama
da lama ao kaos
eu cavo o poço
até ficar mais fundo
teatro do absurdo
na desconstrução do mundo
onde o kaos é mais profundo
poema
concreto
grosso
duro
ereto
dentro
de mym mesma
mora um anjo
negro
que lambuza
de batom
vermelho
a minha boca
no espelho
Marisa Vieira
in Balbúrdia Poética
Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
Oswald de Andrade
AUTO-RETRATO
talvez, uma noite
retorne
cansado das batalhas
e das festas
nada
nas mãos
muito pouco
nos bolsos
os olhos cheios
de imagens
os ouvidos loucos
de sons
shows dos stones
desenhos de escher
a pele tocada
por mulheres chocantes
vagabundo
cruzando estradas
ítacas
revisitadas
exausto das guerras
um dia, talvez
retorne
sem lenço
sem retoques
talhos
no rosto
cicatrizes
na pele da alma
a paisagem
se dissolvendo
velho, arqueado
o sapato
todo furado
e dois versos
na camiseta:
eis a vida
que não vendo
Ademir Assunção
Do livro Risca Faca (inédito).
Selo Demônio
Negro - 2021
PARANÓIA EM ASTRAKAN
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo
seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões aos
pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus
cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos
furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em
festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e
decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua
inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela
fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas
hemorroidas
das beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para
lindos tornozelos
arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um
punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários
desordenados da
imaginação
Roberto Piva
in Poesia Primata
macerar a vida
nas mãos
muito além da superfície
entrar com gosto, com todos os sentidos
nos labirintos das so(m)bras
amar muito além da pele
e das palavras da boca
amar os olhos e os seus desvios
amar o grito - jorro de vazios
amar os ossos, as vísceras, os rios
amar em mim e no outro o que fede
onde sangra
o que se esconde amedrontado
atrás das pernas fechadas do ego
amar cirurgicamente
cavando, curando, mexendo
que a vida, me parece
não é para os fracos de estômago
Clara Baccarin
do livro Vísceras
Editora Patuá - 2019
UM PARA DENTRO
TODO EXTERIOR
nada a esconder
mesmo que
muito por
saber
o mundo
é um
para dentro
todo exterior
por detrás
do dentro
apenas o
dentro
nada
é o que há
para além
do que há:
o oculto
às claras
fundura
em superfície
o mistério
sem segredos:
todas as coisas
ao alcance dos dedos
Paulo Sabino
do livro Um Para Dentro Todo Exterior
Editora Autografia - 2018
Entre
a rosa
e
o sal
se insinua
uma fogueira
que
trepida
lágrima.
Entre
a rosa
e
o sal
se esconde
uma ternura
que
invade
tudo.
Entre
o sal
e
a rosa
se instaura
um coração
que
sangrando
faz nascer
o deserto.
*
Mell Renault
in: "Patuá" - Editora Coralina
memórias no
desassossego
não sou Fernando Pessoa
mas acordei com o coração em alvoroço
aliás nem dormi literalmente no desassossego
na memória Uilcon Pereira passeava
com o seu coração de boatos
a procura do Gabriel de La Puente
que até hoje não sabemos a ponte
por onde atravessou sem direito a despedida
a luz do Farol da Barra me vem aos olhos
de um amor que vem chegando
e me promete acarajés e escadarias
o tempo ah! o tempo e seus contornos inesperados
quando iria imaginar que depois de ouvir por tanto
tempo
com paixão sem limites
Gil
Caetano
Gal
Bethânia
estaria agora assim tão assim
no colo de uma baiana
bebendo o líquido bom
que algum deus me reservou
e deixou guardada para mim. ?
Artur Gomes
na memória do desassossego
O
Poeta Enquanto Coisa
www.secretasjuras.blogspot.com
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